1.Sudério encontra
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2.Um relógio perdido
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3. Ela e Sudério
Nessa tarde, procurou desesperadamente a grande mansão de Gardínia na tentativa de reconstruir o que acontecera desde o primeiro passo. Contudo, tal tornou-se-lhe impossível: não havia, à claridade do sol, nenhum velho de olhar familiar nem um bichinho luminoso que lhe abrisse as ramagens. Por isso, seguiu Sudério ao acaso pelos arredores da aldeia, até encontrar uma grande sebe de verduras que lhe fez nascer a esperança de encontrar uma grande mansão iluminada, com uma bela varanda sobre um mar calmo. O que encontrou, porém, foi um pequeno lago misterioso, de àguas negras, onde um enorme cisne branco, de bico avermelhado, deslizava suavemente. Sentiu-se desconcertado. Não conhecia o lugar, cada vez menos se conhecia a si próprio.
O cisne não deu pelo aproximar de Sudério, mas soltou um grito tão expressivo que o sol pareceu renascer para lá da sebe verde. Depois, mergulhou a cabeça nas àguas negras durante um período que ao nosso herói pareceu demasiado longo. Espantado, olhava. Esperava que a todo o momento surgisse um habitante da aldeia alertado pelo grito. Procurando com o olhar uma casa próxima, surpreendeu-se por não avistar nenhuma, achando-se no que parecia um gigantesco jardim cujo lugar especial era aquele lago com aquele cisne magnífico. Um bater de asas levou-lhe o olhar para o céu azul. O cisne partira. -- Espera! – apeteceu-lhe gritar – Onde vais? Espera por mim! Diz-me quem és! Ficou assim longos momentos, os olhos imersos no céu, agora vazio como se uma sombra eterna ali respousasse, exposta à sua livre imaginação. Quando desceu daquele pedestal, viu que uma velhinha sentada numa cadeira de rodas, e com um criado ao pé, seguira com ele o mesmo rumo, e que também nos seus olhos ficara o rasto luzidio do voo do cisne. -- Como é belo! – exclamou ela – Não achas? Sudério respondeu que era fascinante como uma pintura. -- Algo que apreendemos à natureza e recortamos no nosso recanto mais íntimo. Mas enquanto falava ia olhando, mais uma vez fascinado, a velhinha de aspecto senhorial, que ele nunca vira. Como se nunca tivesse morado naquela aldeia. Ela sorria. E logo lhe respondeu: -- Um pintor famoso disse uma coisa parecida a respeito da arte. Mas é extraordinário como te colocaste no lugar da pintura, como imediatamente colocaste entre ti e a natureza um quadro, uma tela de arte. Não achas que isso é uma maneira de te isolares, uma prova de que receias o contacto com a natureza? Sudério intrigou-se: -- Que quer dizer com isso? -- Nada de especial. Apenas o alerta de uma pessoa muito experiente, que adivinhou em ti o medo do verdadeiro. Os acontecimentos deste espaço que te rodeia são demasiado fugidios para que os possamos classificar e orientar num determinado ponto de vista, uma determinada ideia, uma certa sensibilidade. É um jogo arriscado. Sudério olhou a velha senhora com grande surpresa e admiração. Aquelas palavras pareciam ser as de alguém sabedor do que se passava. Olhou-a, incapaz de responder. Ela retirava-se quando, finalmente, ele conseguiu perguntar: -- Como se chama? Ela virou-se na cadeira de rodas, sorriu acusadoramente, e respondeu com outra pergunta: -- Eu não disse? |
4.Aldin encontra Landina
Aldin, o pastor, estava na planície a tocar a sua flauta quando ela apareceu, de um reflexo do sol no cume da montanha, no seu cavalo branco e reluzente como prata, e com os seus longos cabelos negros, que lhe corriam as costas como um rio e lhe provocaram um arrepio desconhecido e agradável, que lhe inundou o corpo como uma luz.
Viu-a a aproximar-se, os olhos negros, encantadores, os grandes lábios vermelhos que lhe abriram as ravinas do desejo, a pose elegante, a cabeça direita como uma flor vaidosa, e um estranho calor impediu-lhe os movimentos, petrificou-o em adoração. Quando ela desmontou e lhe pediu um pouco de àgua, naquela voz delicada e doce, ele pareceu finalmente despertar, e logo se apressou a dar o seu cantil. Ela gostou dele e daquele estar bucólico, do cheiro selvagem, a natureza; lá em baixo, a planície verde espraiava-se preguiçosamente. Ele gostou que ela se sentasse junto a ele, sentindo o vestido a roçar-lhe no corpo. E sentiu que lhe pertencia. |
5. A arte da realidade
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6.Hilféron foge da mansão e perde-se na floresta
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Quando a voltou a encontrar, Sudério disse-lhe que estava errada e que afinal quem fugia da natureza e se isolava era ela. Sentada na sua cadeira de rodas, a velha senhora mirou-o através de um leque e pareceu não compreender.
Ele insistiu: -- É a senhora que está isolada da natureza, e não eu. Protege-se dela através de palavras como as que pronunciou no jardim. Criticou a arte, denunciou-a como uma forma de alienação, mas sabe bem que a arte não é nada disso. Muito pelo contrário, é o melhor modo de entrarmos em comunhão com a natureza. É uma aproximação, não um isolamento. Se coloco um quadro entre mim e a natureza, não estou a isolar-me, estou a trazer a mim um pedaço dessa natureza. Parecia inspirado, mas uma voz imponente e forte veio do interior das paredes, e um criado extraordinariamente alto aproximou-se, intervindo audaciosamente na conversa: -- Pessoa disse que o facto de existir a arte é uma prova de que a realidade não chega. -- Sim, a simples realidade não nos satisfaz... -- disse ela -- Mas onde está a realidade? No nosso olhar simples e desprevenido sobre as cosas, na nossa visão codificada e adjectivada dos acontecimentos? Ambos a olharam sem encontrar uma resposta. Ela continuou, perguntando-se então onde estava a arte se não se sabia onde estava a realidade. De súbito, o criado gigante começou a chorar, incapaz de resistir à angústia daquele pensamento, e retirou-se rapidamente para o interior da grande casa. Só então Sudério reparou onde realmente se encontrava. Perguntou à velha senhora se era ali que habitava, e ela respondeu que de tempos a tempos era ali. Ele esteve para lhe fazer novas perguntas, mas mergulhou num estado de confusão e incompreensão que o levou dali sem uma palavra, como um cavalo atrelado. Nem reparou na sebe, e pisou muitas, muitas flores. |
Numa noite de grande tempestade, o criado gigante Hilféron abriu a porta da mansão e saiu pela rua a correr como um louco. Ia cego como um trovão, e foi assim que depressa se achou numa floresta densa e escura, onde
a chuva pouco caía, retida em cima nas folhas das àrvores. Quando os trovões deixaram de fazer-se ouvir, um silêncio tenebroso apoderou-se de todas as coisas, à excepção de um grito ocasional, algures, de um pássaro rebelde. Hilféron procurou-o desesperadamente, pensando que aquele canto sinistro e longínquo seria talvez a entrada para a realidade daquela noite. Caminhou ao acaso, oscilando como um trapezista sobre o precipício, os olhos fixos nas inatingíveis copas das àrvores. Todo o seu corpo estremeceu ao iludir-se, pensando que poderia estar próximo de resolver o enigma da vida, da realidade e da fantasia. A resposta estava em qualquer lado. Porque não naquele noite chuvosa e fantasmagórica? Mas o grito estava por todo o lado, para lá das nuvens, na garupa do trovão, nas flores molhadas em cima das quais se deixou cair cheio de desânimo e de angústia. Pela manhã, Aldin encontrou-o ali, quase soterrado na lama e nas ervas. Hilféron dormia tranquilamente, como um menino, e o pastor seguiu caminho para as planícies verdes, optando por não despertar o gigante adormecido. |
7.Digor, Hilféron e Lendina no mundo da floresta
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8.Sudério é suspeito da morte de Gardínia e foge |
Quando pela primeira vez viu Lendina, o velho Digor sentiu um buraco abrir-se-lhe debaixo dos pés. Ela dizia-lhe algo, sem que ele soubesse o quê. Subitamente, a sua vida passou a ter um objectivo. Aquela pequena deusa tinha que pertencer-lhe. No seu estilo desajeitado, procurou, por todos os meios, dizer-lhe que a amava. Mas quando finalmente sentiu nos seus os olhos dela, não suportou e fugiu aos gritos, de uma forma desesperada como nunca se lhe tinha ouvido. Desapareceu na escuridão da floresta.
Foi assim que Digor encontrou Hilféron. Perdidos, loucos, incompreendidos e inseguros, aprenderam a reconhecer um no outro o seu estado de espírito. No meio da floresta verde e densa construiram então uma enorme casa, durante meses de muito trabalho. Escondidos de todos, mergulharam num estado selvagem que os transformou em entes misteriosos e desconhecidos, que de noite assaltavam os viajantes e lhes roubavam tudo o que traziam. Havia quem dissesse tratarem-se de lobisómens despertos nas noites de lua cheia, mas havia também os que diziam que era o espírito do velho sapateiro, cujo corpo tinha sido encontrado quase desfeito no fundo do rio, há alguns meses atrás. Vinha por Lendina, dizia-se, e quando Lidéula, a mãe curandeira da bela, numa das suas sessões teve um ataque e caiu morta, mais se passou a acreditar na segunda hipótese. Na aldeia passou a olhar-se Lendina com respeito e temor, como se estivesse possessa e presa do demónio. A pequena suportou a tensão que os olhares exerciam sobre ela, até que uma noite decidiu partir à procura do velho Digor, convencida de que o encontraria facilmente e o seu suplício terminaria. Quando o encontrou, e a Hilféron, sentiu porém que a aldeia estava demasiado longe para regressar, e passou a viver com eles imersa nas profundezas da floresta, partilhando da sua vida selvagem, adorando o reino dos voos livres e frescos através das estradas do vento, a sensação da liberdade absoluta que era pairar no céu com todas as paisagens defronte dos olhos, os caminhos abertos infinitamente para lá dos vales, das montanhas e dos precipícios. -- Quero ser pássaro... -- pedira, em pequena, ao avô, e o velho olhara-a com um sorriso fascinado. Depois fizera-lhe umas asas de papel, com que ela imaginou sobrevoar os prados e as sementeiras, pousando audaciosamente nos espantalhos, picando-lhes o nariz e arrancando-lhes os cabelos... A floresta tornou-se para Lendina um mundo maravilhoso cheio de recantos para descobrir e segredos por sobrevoar. Foi numa dessas explorações que uma ovelha tresmalhada a levou a encontrar Aldin, o jovem pastor. A paixão brotou irresistivelmente. Quando Hilféron soube, pensou que era tempo de partir novamente, como a mãe que deixa o seu menino no sono doce. |
Durante novas divagações nocturnas, no rasto de luzes estranhas, Sudério voltou a encontrar a grande mansão, totalmente iluminada e de portas abertas a todos os olhares curiosos e sem medo de viandantes atraídos pelo mistério. Aí, reencontrou a grande varanda e o mágico mar com as duas velas vogando serenamente, e ainda dois seres que nunca vira, abraçados, à luz do horizonte. Eram eles Aldin e Lendina, que ali se amavam secretamente; ao vê-lo fugiram de imediato. Sudério agarrou a flauta esquecida e correu através do escuro, tentando encontrá-los. Perdeu-se no bosque, entre as folhas sussurrantes e os troncos tenebrosos. Foi caminhando por uma estrada enlameada e estreita, até que ao longe avistou a luz de uma candeia, logo seguida de um grande grupo de sombras humanas donde provinham murmúrios como das àguas de um rio próximo.
Quando se aproximou, viu que era gente da aldeia. Conversavam animadamente, nos seus rostos vagamente iluminados havia uma sombra de preocupação, um brilho de tragédia. Sudério viu que um corpo de mulher havia sido encontrado sem vida. Era bela, e só ele sabia que se chamava Gardínia. Um arrepio percorreu-lhe o corpo e começou a chorar convulsivamente. Todos o rodearam. -- Este sabe alguma coisa... -- diziam. -- Talvez fosse amante dela, irmão, filho, assassino... Quiseram levá-lo para a aldeia. -- Deve ter coisas a dizer à polícia! Mas ele libertou-se de todos os braços e fugiu, desaparecendo no escuro. -- Tudo se confirma! É ele o assassino! Vamos atrás dele! Contudo, não mais o viram. Ninguém entendeu os segredos sibilados pelo vento nas folhas. No dia seguinte, a polícia procurou por toda a aldeia e proximidades, mas não encontrou rasto de Sudério; nem dele nem da família da estranha mulher morta. Na aldeia ninguém sabia quem ela era. Depressa se propagaram sobre o facto as histórias mais diversas, e o caso tomou foros de acontecimento sobrenatural quando no dia do enterro uma trovoada imensa desabou sobre a aldeia, relâmpagos incendiaram casas e ceifaram àrvores. Todas as pessoas se refugiaram na igreja, e quando voltaram o caixão estava vazio e não havia sinais do corpo nem de faísca. |
9. Ela persegue Nitiéis e morre na queda
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10. Uselma e Hilféron desaparecem, Armanit enlouquece e mata Digor
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Quando, naquela manhã de nevoeiro, Ela abriu a janela e afastou os
cortinados de grande beleza que comprara a uma cigana de rosto mágico, viu aquele homenzinho a apanhar ervas debaixo das pedras e a colocá-las num minúsculo saco que trazia ao ombro, enquanto ia olhando furtivamente para todos os lados, e disse de imediato, com a lentidão de um poeta: -- Parece um coelho selvagem... Ficou intrigada e saiu para a rua, procurando saber o que faria ali aquele sujeito tão pequenino e tão estranho, que lhe lembrava os gnomos das histórias infantis. Porém, ao vê-la o pequeno homem fugiu de imediato, saltando a sebe e correndo por entre as àrvores com a agilidade de um esquilo. Ela seguiu-o, com a sua cadeira de rodas, com os olhos e com o instinto. Ele parava a cada instante para ver se continuava a ser perseguido. Tanuro, o hortelão, estava entre os nabos gigantescos que vendia aos sábados no mercado quando viu passar em grande velocidade aquela cadeira de rodas, com alguém gritando em desespero. Correu, mas em vão. A velha senhora não tinha conseguido controlar o veículo na descida e precipitou-se em reviravoltas sucessivas até parar junto a um salgueiro, na margem do rio, morta e desfigurada. Tanuro acercou-se, a tremer, enquanto ao longe o pequeno homem que se chamava Nitiéis corria espavorido, o saco pendurado ao ombro. |
Quando voltaram a partir, Hilféron e Digor foram pelos caminhos até
uma aldeia de pescadores, e aí ficaram, sob o tecto de um velho marinheiro que, ao vê-los fortes e incertos, achou que ali tinha os ajudantes ideais para que o seu velho e querido barco continuasse a sair para o mar que lhe marcara a vida. Chamava-se Armanit, o velho, e contratou-os apesar da desconfiança que entre todos os aldeões se gerara a respeito dos dois desconhecidos. Tinha uma grande casa nas escarpas, e um dia casou com a rapariga mais bonita da aldeia, uma jovem de abundantes cabelos loiros e pequenos seios de criança que se chamava Uselma. Foi para essa casa que a levou, e aí lhe contou as histórias do mar nas noites de Inverno, como um avô à sua neta junto à lareira. Nas madrugadas enevoadas e frias voltava ensopado como um peixe, e Uselma lavava-o e limpava-o com o carinho de uma mãe que protege o seu filho descuidado e inocente. Hilféron e Digor voltavam de noite, à luz das candeias, quando a praia se incendiava de luzes e das vozes das pessoas puxando os barcos para a areia. Uselma ajudava, como todas as outras mulheres, a puxar e a transportar o peixe. Uma noite, quando eles não voltaram, ela sentou-se também na areia molhada, ao lado das outras, esperando num silêncio cada vez mais inquieto que uma sombra no horizonte reabrisse a estrada da esperança. Dois dias depois ainda lá esperavam, persistentes e amargurados, Armanit encostado ao seu cajado cheirando o vento que o mar trazia. Com os seus olhos de àguia, foi ele o primeiro a ver o grande paquete ao longe, maravilhoso, bonito, brilhando ao sol. Levantaram-se gritos entre as mulheres, e algumas atiraram-se à àgua tentando alcançar o barco, buscando desesperadamente uma esperança. Quando eles voltaram finalmente, na manhã mais enevoada de sempre, não se via um palmo à frente da cara, toda a gente estava recolhida em casa, à espera da catástrofe que aquele nevoeiro prenunciava, talvez o fim do mundo, a morte das coisas. Durou dois dias e duas noites, e nesse espaço de tempo ninguém se atreveu a sair para ver as luzes dos barcos que regressavam, num silêncio sufocante de quem chega a terra de ninguém. Eles bateram às portas, exaustos e assustados, e os de dentro demoravam a abrir, pensando que chegava a hora do juizo final. Alguns, diz-se, deixaram mesmo os pobres ao nevoeiro da rua, e por isso muitosforam engolidos por ele, não mais foram vistos, veio o luto e a resignação. E vieram as histórias estranhas do desaparecimento de Uselma e Hilféron, e da loucura de Armanit, que com um machado matou Digor e foi levado pela polícia para uma prisão longínqua. |