Em 1988, na universidade, levei a cabo um trabalho, algo exaustivo, sobre a imprensa humorística em Portugal. Mais tarde, já no Record, publiquei a reportagem, com pequenas adaptações. É a introdução que, para já, aqui fica (inclui uma entrevista, feita por mim, com o jornalista e escritor Afonso Praça, entretanto falecido, em 2001).
A imprensa humorística em Portugal
Introdução
Escolher como tema para um longo trabalho de investigação a Imprensa Humorística em Portugal foi uma opção arriscada e corajosa devido aos condicionalismos que rodeiam o assunto. Em especial pelo facto deste País se chamar Portugal, onde se encara, geralmente, com desconfiança e reserva tudo o que sai dos parâmetros normais de uma sociedade ultra-conservadora e ainda muito determinada por um lamentável espírito moral que lhe foi inculcado durante os 48 anos de fascismo.
Assim, as dificuldades esperadas foram plenamente confirmadas: no entanto, o facto de este ser um tema aliciante e, aliás, pouco explorado por quem quer que seja no nosso País, permitiu-me enfrentar essas dificuldades, compreendê-las naquilo que me foi possível, e elaborar este trabalho que, quanto mais não seja pela sua chamada de atenção para um dos campos de actuação mais importantes da imprensa em todo o mundo, terá o seu valor e importância. Sobretudo para mim que, como leitor, sempre me senti atraído pelas rubricas humorísticas dos jornais e impelido a imitá-las e segui-las atentamente. Julgo que, como eu, haverão muitos leitores que, ao comprarem o “Diário de Notícias”, por exemplo, a primeira coisa que fazem é ler o “Guarda Ricardo”, do Sam, ou ao comprarem o “Se7e” seguirem as histórias de “Karlos Starkiller”, do Relvas. Estes são apenas alguns exemplos, de que falarei detalhadamente lá mais para a frente.
Aliás, devo confessar que, em parte, neste trabalho, me senti surpreendido pelo facto de quase todas as publicações da imprensa portuguesa que consultei terem uma ou outra rubrica humorística. Isto revela, sem dúvida, que o humor tem uma certa importância e é, de certo modo, uma exigência e um chamariz para os leitores. É claro que não tão agradável será constatar que uma grande parte dessas rubricas humorísticas têm características que as desvalorizam e ao humor: ou são estrangeiras (importadas, portanto) ou se limitam a preencher um espaço vazio, ou são utilizadas como simples passatempos! Recorde-se, a propósito, as palavras proferidas por Pinto Balsemão em conferência realizada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 16 de Janeiro deste ano [1988, ndr]: “A comunicação social é importadora e, portanto, dependente.”
Subjectivo será, concerteza, considerar, como o fiz atrás, que o facto das rubricas humorísticas, em alguns jornais, se limitarem a preencher espaços vazios ou a serem simples passatempos as desvaloriza. No entanto, as pessoas ligadas ao humor em Portugal parecem estar todas de acordo no que diz respeito a este aspecto. Afonso Praça, director do desaparecido “O Bisnau”, é suficientemente convicto nas suas palavras: “O humor deve ter um papel de intervenção na sociedade portuguesa. Entendo o humor como uma forma de intervenção cívica e cultural. O bom humor é sério.”
Também assim pensa Norberto Lopes: “Tanto o humor como a sátira têm um papel primacial num país nostálgico e sorumbático como é o nosso” (1). Vasco, cartoonista: “Acho que devemos dessacralizar ou desengomar os colarinhos da actividade artística, estética, poética…” (2).
Para os humoristas o importante é, portanto, intervir na sociedade. Para eles o humor é um assunto sério, obrigatoriamente sério. Talvez devido a isto, a este carácter de intervenção social, o humor é difícil e enfrente dificuldades. No tempo do fascismo vários humoristas viram os seus trabalhos censurados. Sam, cartoonista: “A censura fazia parte do combate, e por isso tive a necessidade de usar, como todos os outros, um tipo de exercício, a subtileza, o jogo das escondidas. O meu primeiro álbum é fruto destes exercícios, nele faço o confronto entre a Ordem e a Desordem. Eu poderia ter escolhido os políticos ou os homens influentes e falar deles, mas isso não os afectava, já que as suas posições estavam bem defendidas. Por outro lado, se eu falasse directamente nas dificuldades do povo, na miséria, nos preços demasiado altos, a censura caía-me em cima como aconteceu várias vezes, porque isso era a incitação à desordem. A Ordem para o Estado Novo era mais importante que a miséria do povo.” (3)
Não se pense, no entanto, que a censura acabou com o fim do fascismo. O testemunho de Carlos Barrada, cartoonista: “Tenho um desenho censurado depois do 25 de Abril, uma caricatura ‘chata’ para as relações com Angola, e o jornal censurou-a, mas nem me chateei porque reconheci que me tinha precipitado. Antes do 25 de Abril eu estava na tropa em Luanda. Aí eu fazia uns cartoons no ‘Notícias’, e depois fiz uma série sobre sargentos, já que eu ‘gostava’ muito deles… Eles não gostaram, mandaram cartas, chatearam-me… Depois do 25 de Abril, quando trabalhava no ‘Coiso’, um jornal muito agressivo publicado pelo ‘República’, onde colaborava o Mário Henrique-Leiria, a gente atacava muito os padres, e a igreja chateava mandando-nos cartas…” (4).
Afonso Praça relaciona o êxito da imprensa humorística com a estabilidade social do país: “O país onde a imprensa humorística tem mais êxito é aquele onde há mais estabilidade.” E aponta como exemplo a Inglaterra. E porquê isto? Adolph Kharach, psicólogo soviético, defende o seguinte:
“O riso é um poderoso factor de união. Sendo esse o seu sentido principal, deixou de ser normal rir sozinho. O riso tem uma propriedade admirável: enche o ar como se fosse uma cortina de fumo. Por isso, um grupo ri mais facilmente do que uma pessoa só. Esta cortina dá a possibilidade de se dizer muita coisa, sem provocar a ira dos outros. Vejamos o caso dos palhaços. Parece que tudo lhes é permitido, protegidos por essa cortina. E, nos momentos em que uma pessoa é sincera com outra, com a qual não tem relações muito íntimas, as verdades são ditas com um sorriso nos lábios, evitando-se, assim, que ela se ofenda. O sorriso dá, nestes casos, a possibilidade de se “bater em retirada”, de se argumentar que as afirmações feitas o foram por brincadeira. Deste modo, concilia-se a nossa aspiração a dizermos a verdade e de nos sentirmos em segurança. As pessoas mais abertas riem mais. Elas sentem-se indefesas e, por isso, precisam de lançar essa cortina de riso. As pessoas fechadas sentem-se mais seguras e, portanto, não precisam de rir muito. O riso provoca maior prazer quando se tem a consciência de que não afecta a nossa protecção e inviolabilidade. Por isso rimos com gosto quando nos sentimos bem protegidos e, ao rirmos, sentimos uma segurança ainda maior.”
Ou, como diz outro psicólogo, Silvério Tasso, “o riso é uma forma de se superar o medo”.
Assim, compreende-se que, num país socialmente instável, o humor seja uma arma perigosa politicamente e, por isso, censurado. Logo, e tal como Afonso Praça o diz, é natural que seja nas sociedades com maior estabilidade que o humor tem a possibilidade e a liberdade de existir e progredir.
Outra das dificuldades com que se depara o humor é a seriedade das pessoas e a maneira como o recebem. Vítor Farinha, de “A Bola”, diz que as pessoas sobre quem recai o humor “reagem mal, a maior parte delas”. No entanto, como diz Henri Bergson no seu livro “O Riso”, “não existe cómico fora do que é propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; mas nunca será risível. Poderemos rir-nos de um animal mas somente porque surpreendemos nele uma atitude de homem ou uma expressão humana. Poderemos rir-nos de um chapéu, mas do que a gente se ri não é do bocado de feltro ou de palha, mas da forma que os homens lhe deram, do capricho humano que o modelou.”
A capacidade de tolerância das pessoas prende-se, pois, com as próprias características de uma sociedade e de um povo, pelo que o sucesso de um povo não se poderá condicionar apenas pelo factor de estabilidade política, mas também pelo meio em que evolui. Quer isto dizer, com a sociedade e as muitas e variadas condições que a marcam.
NOTAS:
(1) Entrevista ao Diário de Notícias em 16 de janeiro de 192
(2) Entrevista ao Jornal de Letras em 5 de fevereiro de 1985
(3) Entrevista ao Jornal de Letras em 11 de dezembro de 1985
(4) Entrevista ao Jornal de Letras em 21 de janeiro de 1985
Assim, as dificuldades esperadas foram plenamente confirmadas: no entanto, o facto de este ser um tema aliciante e, aliás, pouco explorado por quem quer que seja no nosso País, permitiu-me enfrentar essas dificuldades, compreendê-las naquilo que me foi possível, e elaborar este trabalho que, quanto mais não seja pela sua chamada de atenção para um dos campos de actuação mais importantes da imprensa em todo o mundo, terá o seu valor e importância. Sobretudo para mim que, como leitor, sempre me senti atraído pelas rubricas humorísticas dos jornais e impelido a imitá-las e segui-las atentamente. Julgo que, como eu, haverão muitos leitores que, ao comprarem o “Diário de Notícias”, por exemplo, a primeira coisa que fazem é ler o “Guarda Ricardo”, do Sam, ou ao comprarem o “Se7e” seguirem as histórias de “Karlos Starkiller”, do Relvas. Estes são apenas alguns exemplos, de que falarei detalhadamente lá mais para a frente.
Aliás, devo confessar que, em parte, neste trabalho, me senti surpreendido pelo facto de quase todas as publicações da imprensa portuguesa que consultei terem uma ou outra rubrica humorística. Isto revela, sem dúvida, que o humor tem uma certa importância e é, de certo modo, uma exigência e um chamariz para os leitores. É claro que não tão agradável será constatar que uma grande parte dessas rubricas humorísticas têm características que as desvalorizam e ao humor: ou são estrangeiras (importadas, portanto) ou se limitam a preencher um espaço vazio, ou são utilizadas como simples passatempos! Recorde-se, a propósito, as palavras proferidas por Pinto Balsemão em conferência realizada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 16 de Janeiro deste ano [1988, ndr]: “A comunicação social é importadora e, portanto, dependente.”
Subjectivo será, concerteza, considerar, como o fiz atrás, que o facto das rubricas humorísticas, em alguns jornais, se limitarem a preencher espaços vazios ou a serem simples passatempos as desvaloriza. No entanto, as pessoas ligadas ao humor em Portugal parecem estar todas de acordo no que diz respeito a este aspecto. Afonso Praça, director do desaparecido “O Bisnau”, é suficientemente convicto nas suas palavras: “O humor deve ter um papel de intervenção na sociedade portuguesa. Entendo o humor como uma forma de intervenção cívica e cultural. O bom humor é sério.”
Também assim pensa Norberto Lopes: “Tanto o humor como a sátira têm um papel primacial num país nostálgico e sorumbático como é o nosso” (1). Vasco, cartoonista: “Acho que devemos dessacralizar ou desengomar os colarinhos da actividade artística, estética, poética…” (2).
Para os humoristas o importante é, portanto, intervir na sociedade. Para eles o humor é um assunto sério, obrigatoriamente sério. Talvez devido a isto, a este carácter de intervenção social, o humor é difícil e enfrente dificuldades. No tempo do fascismo vários humoristas viram os seus trabalhos censurados. Sam, cartoonista: “A censura fazia parte do combate, e por isso tive a necessidade de usar, como todos os outros, um tipo de exercício, a subtileza, o jogo das escondidas. O meu primeiro álbum é fruto destes exercícios, nele faço o confronto entre a Ordem e a Desordem. Eu poderia ter escolhido os políticos ou os homens influentes e falar deles, mas isso não os afectava, já que as suas posições estavam bem defendidas. Por outro lado, se eu falasse directamente nas dificuldades do povo, na miséria, nos preços demasiado altos, a censura caía-me em cima como aconteceu várias vezes, porque isso era a incitação à desordem. A Ordem para o Estado Novo era mais importante que a miséria do povo.” (3)
Não se pense, no entanto, que a censura acabou com o fim do fascismo. O testemunho de Carlos Barrada, cartoonista: “Tenho um desenho censurado depois do 25 de Abril, uma caricatura ‘chata’ para as relações com Angola, e o jornal censurou-a, mas nem me chateei porque reconheci que me tinha precipitado. Antes do 25 de Abril eu estava na tropa em Luanda. Aí eu fazia uns cartoons no ‘Notícias’, e depois fiz uma série sobre sargentos, já que eu ‘gostava’ muito deles… Eles não gostaram, mandaram cartas, chatearam-me… Depois do 25 de Abril, quando trabalhava no ‘Coiso’, um jornal muito agressivo publicado pelo ‘República’, onde colaborava o Mário Henrique-Leiria, a gente atacava muito os padres, e a igreja chateava mandando-nos cartas…” (4).
Afonso Praça relaciona o êxito da imprensa humorística com a estabilidade social do país: “O país onde a imprensa humorística tem mais êxito é aquele onde há mais estabilidade.” E aponta como exemplo a Inglaterra. E porquê isto? Adolph Kharach, psicólogo soviético, defende o seguinte:
“O riso é um poderoso factor de união. Sendo esse o seu sentido principal, deixou de ser normal rir sozinho. O riso tem uma propriedade admirável: enche o ar como se fosse uma cortina de fumo. Por isso, um grupo ri mais facilmente do que uma pessoa só. Esta cortina dá a possibilidade de se dizer muita coisa, sem provocar a ira dos outros. Vejamos o caso dos palhaços. Parece que tudo lhes é permitido, protegidos por essa cortina. E, nos momentos em que uma pessoa é sincera com outra, com a qual não tem relações muito íntimas, as verdades são ditas com um sorriso nos lábios, evitando-se, assim, que ela se ofenda. O sorriso dá, nestes casos, a possibilidade de se “bater em retirada”, de se argumentar que as afirmações feitas o foram por brincadeira. Deste modo, concilia-se a nossa aspiração a dizermos a verdade e de nos sentirmos em segurança. As pessoas mais abertas riem mais. Elas sentem-se indefesas e, por isso, precisam de lançar essa cortina de riso. As pessoas fechadas sentem-se mais seguras e, portanto, não precisam de rir muito. O riso provoca maior prazer quando se tem a consciência de que não afecta a nossa protecção e inviolabilidade. Por isso rimos com gosto quando nos sentimos bem protegidos e, ao rirmos, sentimos uma segurança ainda maior.”
Ou, como diz outro psicólogo, Silvério Tasso, “o riso é uma forma de se superar o medo”.
Assim, compreende-se que, num país socialmente instável, o humor seja uma arma perigosa politicamente e, por isso, censurado. Logo, e tal como Afonso Praça o diz, é natural que seja nas sociedades com maior estabilidade que o humor tem a possibilidade e a liberdade de existir e progredir.
Outra das dificuldades com que se depara o humor é a seriedade das pessoas e a maneira como o recebem. Vítor Farinha, de “A Bola”, diz que as pessoas sobre quem recai o humor “reagem mal, a maior parte delas”. No entanto, como diz Henri Bergson no seu livro “O Riso”, “não existe cómico fora do que é propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; mas nunca será risível. Poderemos rir-nos de um animal mas somente porque surpreendemos nele uma atitude de homem ou uma expressão humana. Poderemos rir-nos de um chapéu, mas do que a gente se ri não é do bocado de feltro ou de palha, mas da forma que os homens lhe deram, do capricho humano que o modelou.”
A capacidade de tolerância das pessoas prende-se, pois, com as próprias características de uma sociedade e de um povo, pelo que o sucesso de um povo não se poderá condicionar apenas pelo factor de estabilidade política, mas também pelo meio em que evolui. Quer isto dizer, com a sociedade e as muitas e variadas condições que a marcam.
NOTAS:
(1) Entrevista ao Diário de Notícias em 16 de janeiro de 192
(2) Entrevista ao Jornal de Letras em 5 de fevereiro de 1985
(3) Entrevista ao Jornal de Letras em 11 de dezembro de 1985
(4) Entrevista ao Jornal de Letras em 21 de janeiro de 1985
Imprensa humorística: uma longa tradição
Afonso Praça justifica o aparecimento de "O Bisnau" pelo facto de, na altura, haver uma lacuna, "o que estava em desacordo com a tradição cultural portuguesa".
Efectivamente, a imprensa humorística tem, em Portugal, uma longa e rica tradição, cujos primórdios vêm desde o tempo das Cantigas de Escárnio e Maldizer. Então, os trovadores portugueses, influenciados pelos da Provença, satirizavam e ridicularizavam temas como a entrega de castelos ao Conde de Bolonha, as pretensões dos poetas pobres e humildes, a vida duvidosa das soldadeiras, os amores entre fidalgos e plebeias, a ambição dos pretensiosos, as mentiras de amor e o desconcerto do mundo. Alguns desses poetas que entre os séculos XII e XIV abordaram com saudável espírito crítico várias situações da sociedade da época, são, por exemplo, Diogo Pezelho, Martim Soares, João de Gaia e D. Dinis.
Após as Cantigas de Escárnio e Maldizer, é com Gil Vicente que a literatura portuguesa voltar a tomar contacto com o humor e a sátira. O teatro vicentino é, com efeito, rico, imensamente rico, na crítica ao ambiente social da primeira metade do século XVI. Os temas mais explorados por aquele que é considerado "o pai do teatro português" são a relaxação de costumes no clero, a corrupção na Administração Pública e na Corte, a vida parasitária e empobrecida da nobreza, a dissolução da família e dos costumes. Obras como "Auto da Índia", "Auto da Feira" ou "Farsa de Inês Pereira" são magníficos tratados de crítica social.
Mais podemos encontrar na rica história da literatura portuguesa. Luís de Camões, António José da Silva (chamado "O Judeu"), Camilo Castelo Branco, João de Deus, Eça de Queiroz, Fialho de Almeida, são apenas alguns dos numerosos escritores e poetas portugueses que exploraram arrojadamente a veia humorística, insistindo sobretudo na sempre saudável crítica social.
De Nogueira da Silva ao "O Bisnau"
Perante tudo o que apontámos atrás, atribuir a Nogueira da Silva o título de "pioneiro da imprensa humorística em Portugal" não pode deixar de ser muito relativo. No entanto, é assim que ele é apontado por Vasco de Castro, num trabalho publicado no "Diário de Notícias" em 28 de dezembro de 1981. No entanto, não podemos deixar de considerar que nada aparece de um momento para o outro e que, portanto, o arranque proporcionado por Vieira da Silva não é senão o culminar de um longo processo que preparou, a pouco e pouco, as bases da imprensa satírica em Portugal.
Tendo publicado desenhos nos "Suplemento Burlesco do Patriota" e na "Revista Popular", foi devido ao sucesso desta última que Francisco Augusto Ferreira da Silva conseguiu, aos 25 anos, a saída do anonimato e alguma estabilidade material. A 9 de fevereiro de 1856 saía dos prelos o primeiro número de "Asmodeu", semanário "burlesco e não político", editado e ilustrado pelo próprio Nogueira da Silva. A "Asmodeu" seguiram-se "Cabrion" (1860), "Lucifer" (1864) e ainda "Celebridades Contemporâneas" e colaborações de vários tipos no "Arquivo Pitoresco", onde criou a primeira escola de gravura em madeira no nosso País. Quando morreu, em 1868, com apenas 37 anos, o desenho de humor e a imprensa satírica tinham já um público fiel, que comprava publicações como "Torniquete" (1863), "Demócrito", "Escalpelo" e "Piparote" (1865).
Dois anos após a morte de Nogueira da Silva, aparecia nas livrarias e pelos salões alfacinhas um álbum de caricaturas intitulado "O Calcanhar de Achilles" e um jornal de nome "A Berlinda". Assinava Raphael Bordallo Pinheiro, e com ele surgia o grande mestre do desenho satírico português. E, como diz Vasco de Castro, "um período brilhante da nossa imprensa".
Autor de inúmeras caricaturas alusivas a personagens da sociedade portuguesa, com especial destaque para a sua genial criação do "Zé Povinho", Raphael Bordallo Pinheiro trabalhou em várias publicações, mas aquela em que mais terá sobressaído a sua veia satírica terá sido o "António Maria", um jornal com o nome de um político. No "António Maria" fez Raphael "o repositório das desgraças nacionais e o requisitório da hipocrisia irredutível, tornados comuns àquilo a que se chamou "a singularidade de ser português". É Baptista-Bastos quem o diz num trabalho publicado no "Diário Popular" em 2 de abril de 1984, um inquérito intitulado "O Rir e o Riso". E continua: "O "António Maria" foi um azorrague medonho que feriu o corpo beato, a política corrupta, o jornalismo enfeudado, a literatura de água-childra".
Efectivamente, a imprensa humorística tem, em Portugal, uma longa e rica tradição, cujos primórdios vêm desde o tempo das Cantigas de Escárnio e Maldizer. Então, os trovadores portugueses, influenciados pelos da Provença, satirizavam e ridicularizavam temas como a entrega de castelos ao Conde de Bolonha, as pretensões dos poetas pobres e humildes, a vida duvidosa das soldadeiras, os amores entre fidalgos e plebeias, a ambição dos pretensiosos, as mentiras de amor e o desconcerto do mundo. Alguns desses poetas que entre os séculos XII e XIV abordaram com saudável espírito crítico várias situações da sociedade da época, são, por exemplo, Diogo Pezelho, Martim Soares, João de Gaia e D. Dinis.
Após as Cantigas de Escárnio e Maldizer, é com Gil Vicente que a literatura portuguesa voltar a tomar contacto com o humor e a sátira. O teatro vicentino é, com efeito, rico, imensamente rico, na crítica ao ambiente social da primeira metade do século XVI. Os temas mais explorados por aquele que é considerado "o pai do teatro português" são a relaxação de costumes no clero, a corrupção na Administração Pública e na Corte, a vida parasitária e empobrecida da nobreza, a dissolução da família e dos costumes. Obras como "Auto da Índia", "Auto da Feira" ou "Farsa de Inês Pereira" são magníficos tratados de crítica social.
Mais podemos encontrar na rica história da literatura portuguesa. Luís de Camões, António José da Silva (chamado "O Judeu"), Camilo Castelo Branco, João de Deus, Eça de Queiroz, Fialho de Almeida, são apenas alguns dos numerosos escritores e poetas portugueses que exploraram arrojadamente a veia humorística, insistindo sobretudo na sempre saudável crítica social.
De Nogueira da Silva ao "O Bisnau"
Perante tudo o que apontámos atrás, atribuir a Nogueira da Silva o título de "pioneiro da imprensa humorística em Portugal" não pode deixar de ser muito relativo. No entanto, é assim que ele é apontado por Vasco de Castro, num trabalho publicado no "Diário de Notícias" em 28 de dezembro de 1981. No entanto, não podemos deixar de considerar que nada aparece de um momento para o outro e que, portanto, o arranque proporcionado por Vieira da Silva não é senão o culminar de um longo processo que preparou, a pouco e pouco, as bases da imprensa satírica em Portugal.
Tendo publicado desenhos nos "Suplemento Burlesco do Patriota" e na "Revista Popular", foi devido ao sucesso desta última que Francisco Augusto Ferreira da Silva conseguiu, aos 25 anos, a saída do anonimato e alguma estabilidade material. A 9 de fevereiro de 1856 saía dos prelos o primeiro número de "Asmodeu", semanário "burlesco e não político", editado e ilustrado pelo próprio Nogueira da Silva. A "Asmodeu" seguiram-se "Cabrion" (1860), "Lucifer" (1864) e ainda "Celebridades Contemporâneas" e colaborações de vários tipos no "Arquivo Pitoresco", onde criou a primeira escola de gravura em madeira no nosso País. Quando morreu, em 1868, com apenas 37 anos, o desenho de humor e a imprensa satírica tinham já um público fiel, que comprava publicações como "Torniquete" (1863), "Demócrito", "Escalpelo" e "Piparote" (1865).
Dois anos após a morte de Nogueira da Silva, aparecia nas livrarias e pelos salões alfacinhas um álbum de caricaturas intitulado "O Calcanhar de Achilles" e um jornal de nome "A Berlinda". Assinava Raphael Bordallo Pinheiro, e com ele surgia o grande mestre do desenho satírico português. E, como diz Vasco de Castro, "um período brilhante da nossa imprensa".
Autor de inúmeras caricaturas alusivas a personagens da sociedade portuguesa, com especial destaque para a sua genial criação do "Zé Povinho", Raphael Bordallo Pinheiro trabalhou em várias publicações, mas aquela em que mais terá sobressaído a sua veia satírica terá sido o "António Maria", um jornal com o nome de um político. No "António Maria" fez Raphael "o repositório das desgraças nacionais e o requisitório da hipocrisia irredutível, tornados comuns àquilo a que se chamou "a singularidade de ser português". É Baptista-Bastos quem o diz num trabalho publicado no "Diário Popular" em 2 de abril de 1984, um inquérito intitulado "O Rir e o Riso". E continua: "O "António Maria" foi um azorrague medonho que feriu o corpo beato, a política corrupta, o jornalismo enfeudado, a literatura de água-childra".
Outro dos grandes artistas do desenho humorístico em Portugal foi Stuart Carvalhais, de quem se diz que foi boémio rebelde e artista. "Mais de meio século de "bonecos" pícaros ou vadios, muitos de denúncia social e humaníssima compaixão" -- é assim que Vasco de Castro apresenta Stuart, num artigo para o "Diário de Notícias" publicado em 5 de abril de 1982. Tendo trabalhado em jornais como o "Gorro", o "Pardal", a "Sátira" e, sobretudo, no diário anarco-sindicalista "A Batalha", o nosso artista travou uma acesa luta social, durante os tempos convulsos da primeira república.
A mesma luta social foi travada por muitos outros artistas e humoristas em jornais e revistas que se foram sucedendo ao longo dos anos, impondo a tradição da imprensa humorística em Portugal. A maior parte deles tiveram uma existência efémera, mas uma ação importante e valiosa. Podemos destacar aqui alguns deles, como "Os Ridículos", "Sempre Fixe", "Pontos nos Is", "A Paródia", "Cara Alegre", "Gaiola Aberta", "Pão com Manteiga" e, num passado próximo recente, "O Bisnau".
De vida muito curta (os seus números sairam entre 24 de março e 1 de dezembro do mesmo ano), "O Bisnau" foi o último dos jornais humorísticos em Portugal (se excetuarmos o "Pau de Canela", de que falaremos mais adiante). Na tradição dos seus antecessores, "O Bisnau" praticava um humor crítico e de grande intervenção social. O seu diretor, Afonso Praça, agora redator n'"O Jornal", é bem convincente nas suas palavras: "As ações dos políticos davam-nos ideias para o nosso trabalho (...). Entendo o humor como uma forma de intervenção cívica e cultural. O bom humor é sério".
Mas, e nem nisso fugiu à tradição, "O Bisnau" conseguiu sobreviver. "No nosso caso, "O Bisnau" acabou porque não se vendia o suficiente". O que é que poderá ter contribuído para isso? "Várias coisas: tínhamos pouca gente, era quase tudo pseudónimos; pouca publicidade, só se fizeram uns anunciozinhos sem movimento. Depois, o jornal tinha poucas páginas, pouca cor...".
No último número de "O Bisnau", diz-se, a determinado ponto: "Ao contrário do que os leitores seriam levados a pensar, continuamos a dizer que há lugar para uma imprensa de humor neste País. Mais: pensamos que ela é necessária e útil. Por isso dizemos que a suspensão da publicação de "O Bisnau" é apenas provisória".
Provisória ou não, já passaram dois anos depois dessas frases e "O Bisnau" não voltou. Não parece haver esperança nas palavras e no rosto de Afonso Praça: "Era desejável que o regresso acontecesse. Mas tudo isso passaria por um projeto gráfico".
E não só um projeto gráfico. Neste País é, sobretudo, necessária coragem, para remar contra a maré.
EM BREVE:
O panorama atual: uns relâmpagos de coragem
A mesma luta social foi travada por muitos outros artistas e humoristas em jornais e revistas que se foram sucedendo ao longo dos anos, impondo a tradição da imprensa humorística em Portugal. A maior parte deles tiveram uma existência efémera, mas uma ação importante e valiosa. Podemos destacar aqui alguns deles, como "Os Ridículos", "Sempre Fixe", "Pontos nos Is", "A Paródia", "Cara Alegre", "Gaiola Aberta", "Pão com Manteiga" e, num passado próximo recente, "O Bisnau".
De vida muito curta (os seus números sairam entre 24 de março e 1 de dezembro do mesmo ano), "O Bisnau" foi o último dos jornais humorísticos em Portugal (se excetuarmos o "Pau de Canela", de que falaremos mais adiante). Na tradição dos seus antecessores, "O Bisnau" praticava um humor crítico e de grande intervenção social. O seu diretor, Afonso Praça, agora redator n'"O Jornal", é bem convincente nas suas palavras: "As ações dos políticos davam-nos ideias para o nosso trabalho (...). Entendo o humor como uma forma de intervenção cívica e cultural. O bom humor é sério".
Mas, e nem nisso fugiu à tradição, "O Bisnau" conseguiu sobreviver. "No nosso caso, "O Bisnau" acabou porque não se vendia o suficiente". O que é que poderá ter contribuído para isso? "Várias coisas: tínhamos pouca gente, era quase tudo pseudónimos; pouca publicidade, só se fizeram uns anunciozinhos sem movimento. Depois, o jornal tinha poucas páginas, pouca cor...".
No último número de "O Bisnau", diz-se, a determinado ponto: "Ao contrário do que os leitores seriam levados a pensar, continuamos a dizer que há lugar para uma imprensa de humor neste País. Mais: pensamos que ela é necessária e útil. Por isso dizemos que a suspensão da publicação de "O Bisnau" é apenas provisória".
Provisória ou não, já passaram dois anos depois dessas frases e "O Bisnau" não voltou. Não parece haver esperança nas palavras e no rosto de Afonso Praça: "Era desejável que o regresso acontecesse. Mas tudo isso passaria por um projeto gráfico".
E não só um projeto gráfico. Neste País é, sobretudo, necessária coragem, para remar contra a maré.
EM BREVE:
O panorama atual: uns relâmpagos de coragem