1. Marcha nupcial
-- Há vinte anos eu era bonita como uma rainha. – disse Hulmira, juntando as achas da fogueira, ao mesmo tempo que os seus olhos se abriam num brilho infantil e memorativo – Quando caminhava, julgava sempre ouvir uma marcha nupcial.
Eliuia, que durante todo o tempo estivera olhando as sombras na parede, respondeu-lhe com um murmúrio imperceptível, como quem resiste a acordar de um sonho. E só quando uma rajada de vento mais forte fez abanar toda a barraca de madeira ela se levantou e com um arrepio de frio disse: -- Não deixes morrer as castanhas. Quero-as vivas porque tenho medo. De um pequeno armário descolorido tirou uma garrafa e dois copos. -- Adoro ouvir música no limite do som. De novo sentada, adorou sentir o calor da fogueira. -- Há vinte anos eu era bela como uma rainha… -- repetiu Hulmira. Os seus olhos de amêndoa brilhavam e estavam cheios de lágrimas. -- Quando caminhava, julgava sempre ouvir uma marcha nupcial. Uma vez encheram de flores o meu corpo e deixaram-no imaculado. Porque me admiravam. A uma rainha pede-se licença para amar… Eliuia, concentrada no copo e no negro elixir, tinha um rosto estranho. Helénico. Era uma belíssima mulher de pele morena navegando num regato ensanguentado. Hulmira continuou: -- Eu adorava as àguas límpidas do rio, deslizando pacientemente através das pedras e das ervas. Sabes, isso sempre me pareceu um símbolo de paz… A água é como a vida que passa, suave, suavemente, através das pequenas ervas verdes. Eu adorava banhar-me nesses sítios, deixar toda a roupa na areia e entregar-me livremente àquela natureza selvagem. Quando saía… -- sorriu com extraordinária felicidade – o meu corpo vinha rodeado de ervas… De súbito, lembrou-se das castanhas de Eliuia e levantou-se, procurando-as. A companheira estava sentada à porta e a chuva caía-lhe impiedosamente sobre as pernas nuas. Ao longe, Hulmira julgou ver a cara assombrada do velho agricultor Olívio Ramase, duma família desaparecida há duzentos anos. Espreitava-as por entre os feijoeiros, uma cana na mão, um grande impermeável cobrindo-lhe todo o corpo. -- Viste aquele trovão? – perguntou Eliuia – Eu cavalgava nele mais a minha cabeleira negra. Hulmira empurrou-a. A cabana cheirava a castanhas assadas e Eliuia sorriu e correu para o lume. Tirou das brasas, com as próprias mãos, dezenas de frutos escuros e estaladiços. Depois, enquanto comia as castanhas, grossas lágrimas lhe deslizaram pela face. Afagou o pé descalço, vermelho, grande, musculado, de Hulmira. Como se fosse um gato. -- Em tempos tive um.. – começou, mas as lágrimas invadiram-lhe a boca já cheia de cabelos. Hulmira, que tinha o rosto largo de dama experiente e bondosa, chegou-se a ela e pousou-lhe na fronte os lábios quentes. Eliuia levantou os olhos vermelhos. A outra sorriu, os olhos ao céu, cor de amêndoa. Em cima, as telhas negras, os barrotes monstruosamente grossos… E as pernas fraquejaram-lhe, como se fossem de cetim. Segurou-se desesperadamente ao banco, à parede, às tábuas da parede, onde estavam desenhados por mão infantil pequenos bonecos saltando à corda e jogando à bola, e uma casa com chaminé, um avião que passava perto, um sol que brilhava no alto do céu. Irresistivelmente, lembrou-se das pinturas na rocha, dos homens dos tempos antigos. -- Espera por mim! – rugiu, um esgar animal alterando-lhe radicalmente as feições. De um pulo, levantou-se e correu para a porta. -- Lá no fundo, lá no fundo… -- murmurou Eliuia, apontando, os olhos semicerrados, as chamas crepitantes – Vês? Ouves? Um coro de mil pessoas… reunidas, à volta de… quem? Quem és? Com os olhos fechados, sorriu. Feliz. Tinha a boca negra do carvão, pedaços de castanha caindo-lhe pelo pescoço. O copo, deixou-o cair, adorou a música dos estilhaços. -- Hulmira… -- estranhou então – Onde estás? Hulmira ia pela horta, através das laranjeiras e dos feijoeiros, à procura de Olívio Ramase. O campo estava iluminado pelos raios que desciam do céu, por escadarias infindáveis e assustadoras. O vento soprava, enrolado, as pernas brancas de Hulmira foram desnudadas até ao cimo e o velho agricultor ficou louco quando a viu. Apareceu-lhe junto ao milho alto que se erguia um metro acima das suas cabeças e que na noite parecia uma montanha negra. Ela estacou, e durante largos minutos ficou sem saber o que fazer, o que pensar, o que olhar. Olívio Ramase tinha nos olhos a cobiça e o sonho, as suas pupilas envoltas por uma absurda claridade, a pele do rosto moreno contorcida por espasmos irreprimíveis, como uma velha terra assaltada por pequenas erupções vulcânicas. Também ele não libertou palavras, naquele momento. No entanto, acariciou-a como o vento e a chuva da noite, passou-lhe os lábios pelo pescoço através dos cabelos negros, apertou-lhe o corpo incendiado com tal energia que ambos caíram na terra lavrada. Esta afundou-se ao seu peso, e quando Eliuia veio pela noite, cambaleando aos gritos de Hulmira, caiu naquele buraco sobre o corpo inerte de mulher. Um relâmpago que atravessou nesse momento a noite iluminou a planície e mostrou-lhe o grande milho verde e as montanhas ao longe, a torre da igreja e uma criança nua que mergulhava através das brumas da charneca. Sem saber porquê, gritou: -- Gácia! Vem cá! Mas quem era Gácia? Voltou a gritar várias vezes por este nome e Hulmira acordou e não acreditou que estava acordada. Puxou Eliuia por um braço, mas não conseguiu mais do que desenterrá-la da lama e puxá-la para junto do milho gigante, onde ficaram sentadas, olhando a lua de leite e o vento que serenava. As gotas de chuva desapareceram quase instantaneamente, e de um momento para o outro o céu rasgou-se de uma claridade abundante, de uma bela cor laranja que lhes aqueceu os corações, fazendo-lhes correr por todo o corpo uma poderosa onda de emoção, como se as duas fossem flores murchas que despertassem ao primeiro contacto com o sol. -- Como um copo de aguardente! – gritou Eliuia, o seu rosto helénico atravessado de um sorriso de felicidade e de sonho. Era madrugada, sentiu-o Hulmira. Não Eliuia, que não tinha religião no corpo. Hulmira tinha-a no olhar, no canto dos pássaros que sentiu renascer quase subitamente. -- Está a amanhecer. – disse. Eliuia pareceu não ouvir as palavras. Mas estava deleitada com a música da aurora que embranquecia, e a determinada altura pôs-se de pé, ergueu a cabeça para o céu, e imitou o cantar de um galo que, ao longe, anunciava o nascer de um novo dia. Depois riu-se, e o bicho respondeu-lhe lá no seu poleiro longínquo. Foi Hulmira quem, depois de um longo silêncio, lhe disse, mais uma vez puxando o seu braço, como a mãe que guia a filha: -- Vamos até ao rio tomar um grande banho. Foram. Penetraram na verde charneca, que cheirava a pinheiros e a estevas. Incógnitas aves saudavam-nas à sua passagem, assustadas lagartixas fugiam-lhes debaixo dos pés. -- Já cortaste o rabo a uma? – perguntou Hulmira, mas Eliuia estava ocupada em descobrir os ninhos nas àrvores por que passavam, e não lhe deu qualquer resposta. Hulmira continuou: -- Em pequena aconteceu-me cortar o rabo a uma. Sabes o que se passou então? Ela fugiu, mas o rabo cortado ficou a mexer durante muito tempo, como se continuasse vivo, como se continuasse a pertencer a um corpo e a um cérebro, como se se contorcesse cheio de dores! Eliuia voltou então a cabeça: -- Verdade? É uma coisa impressionante! O rosto pela primeira vez interessado da companheira fez rir Hulmira. -- Já reparaste como estamos sujas, enlameadas da cabeça aos pés? Como dois bebés! Os primeiros raios de sol penetravam, entretanto, através das árvores e iluminaram a repousada água do rio. Hulmira parou e de novo recordou: -- Há vinte anos eu era bonita como uma rainha. Quando caminhava, julgava sempre ouvir uma marcha nupcial. ´ Eliuia: -- Estou a ouvi-la. Vem do fundo das àguas e chama-nos para o seu interior. Ouves? Tão bem como eu? Nuas, os corpos brancos confundindo-se na luz do dia, mergulharam nas àguas sujas e nadaram através das densas ervas verdes. A marcha nupcial atravessava o ar, a àgua e as folhas da floresta, e foi tão bela e real que as duas tiveram que chorar, não sabendo se de alegria se de tristeza. |
2. Arco-íris
Naquele dia toda a aldeia estranhou. O padre Maicel, que logo às primeiras horas do sol sempre passeava os seus cabelos brancos por todas as ruas, saudando e acordando as ovelhas do seu rebanho, falhou pela primeira vez em trinta anos, desde que ali chegara uma tarde, ainda com cara de menino mas já com cabelos brancos, e com a vibração no olhar que o haveria de marcar até ao dia final.
Pois naquela manhã ninguém o viu passar. Nem durante toda a tarde. A porta da igreja mantêve-se fechada, cruel no seu mutismo. Além do mais, era dia de Natal, e nessas ocasiões o padre Maicel sempre parecia doido de contentamento, chamando para a sua igreja todas as pessoas que encontrava na rua. Assim muito estranharam todos. Mas o que ninguém sabia era que nessa madrugada, ainda o escuro habitava sobre as suas cabeças, já o padre caminhava através da charneca próxima, de ouvidos à escuta, a boca entreaberta, todos os sentidos palpitantes. Nessa noite não se deitara. Martelavam-lhe a cabeça as palavras de um mendigo que naquela tarde em silêncio chegara à aldeia e percorrera todas as portas dizendo simplesmente: -- Jesus vem esta noite. Nada pediu, limitou-se a este extraordinário aviso, e quando Maicel lhe perguntou pelo nome voltou a responder com a mesma simplicidade: -- João. Os olhos de João, grandes e parados como a lua, não deixaram dormir o padre Maicel na noite de Natal. Atento a ruídos e acontecimentos, não pôde deixar de estranhar as misteriosas vozes que a madrugada lhe trouxe, e foi seguindo a ordem dos seus sentidos que se embrenhou na charneca ainda escura e até assustadora, cheia de finos assobios de todos os cantos, de sombras rápidas e esguias que num segundo cruzavam o céu cinzento, azul depois quando o sol esticou os braços e a claridade banhou padre e floresta, sem que Jesus tivesse vindo. -- São fadas. – murmurou Maicel, logo que as viu. Eliuia tinha o corpo fino de uma adolescente, as pernas compridas e as ancas levemente arredondadas, os cabelos negros e longos descendo-lhe atrevidamente pelas costas. Hulmira era a mulher de formas plenamente realizadas, o corpo largo como um leito, os seios bamboleantes, quase desumanamente grandes. Nunca vira o padre Maicel coisa semelhante. Aos 55 anos, permanecia puro como um anjo. -- Deus do céu! – não pode deixar de sussurrar, escondido atrás de uma grande esteva, de flores brancas com cheiro acre, que as abelhas começavam avidamente a explorar. Avidamente não pode deixar de olhar o velho religioso para as àguas do rio, onde as fadas se banhavam. Benzeu-se Maicel, e procurou pôr-se de pé. -- Vou para longe deste sítio! É o diabo que me tenta! No entanto, as pernas tremeram-lhe, sentiu-se fraco como nunca antes, leve como uma pena de ave. -- Perdoai-me, Senhor, se vos ofendi. Mas este vosso filho não merecia tal castigo. Eram belas, as mulheres. Os seus corpos tinham uma harmonia nunca sonhada, a pele brilhava com a suavidade de uma vela num altar. O rosto gordo do padre suava como se estivesse à beira do inferno. Segurou o pequeno crucifixo no peito, e foi nesse momento que o arco-íris lhe apareceu, grandioso e belo, começando no rio, como um pai protegendo as fadas. E então convenceu-se que aqueles seres pertenciam realmente a um outro mundo; ficou procurando-lhes as asas, e não as encontrando remoeu para consigo: -- São fadas! As mulheres não podem ser tão belas! Do rio, elas olharam a sombra de túnica negra e sorriram. Eliuia saltou, de um pulo, para a areia da margem, e apareceu em todo o seu esplendor frente ao padra Maicel. Corriam-lhe por todo o corpo pequenas gotinhas de àgua, brilhantes como o seu sorriso e a faísca dos belíssimos e provocantes olhos negros. O padre amou-a naquele instante. Sem pensar. Louco, bêbado, traído pelo olhar, vencido pelos sentidos. Hulmira veio depois. E o religioso desmaiou, incapaz de suportar a intensidade daquela paixão. O arco-íris tinha desaparecido quando acordou o padre Maicel. Não entendeu o que se passara. Duas pequenas borboletas azuis e pretas encontravam-se pousadas sobre o seu ventre, ainda arfante. Por entre a névoa dos seus olhos pode ver-lhes as antenas finíssimas, de cor dourada, e a tessitura especial duas suas grandes asas abertas, trémulas como se assustadas, trémulas como se delirantes de prazer. Então, vieram-lhe à cabeça ideias estranhas, pensamentos que antes nunca lhe tinham atravessado o cérebro: -- As borboletas azuis donde vêm? Julgo que do mar. Estas têm nas asas o feitio e os riscos das ondas. E o modo como me olham... Vogava num oceano calmo e doce. Tinha o corpo leve do nadador que bóia ao sabor do vento. Para lá das duas borboletas azuis pousadas sobre o seu ventre não divisava nada do que o rodeava. Apenas o tom rosado da esplendorosa manhã florestal. Continuou mirando as asas riscadas de azul e preto, com desenhos certinhos, geométricos, e poucos minutos depois tentou apanhá-las. Contudo, elas fugiram. Numa estranha orquídea negra, abruptamente crescida entre as pedras miudinhas, pousaram depois de um voo hesitante. -- Parecem surpreendidas com a violência do homem... -- não pode deixar de pensar. Só então o padre Maicel deu conta da sua figura e posição. A consciência religiosa caiu-lhe pesadamente em cima quando avistou a pequena cruz de madeira afastada do seu corpo, algo perdida entre a poeira e as estevas. O fio estava perdido. Sentiu-se, então, o homem mais infeliz do mundo. |
3. Natal
Sentadas no cimo de um monte muito alto, estendiam solenemente os olhos pela ampla e quase infinita paisagem.
-- É tão simples, tão vulgar e... ao mesmo tempo, tão bonito! -- O quê? -- Os telhados vermelhos, as paredes brancas, a torre da igreja, a sombra dos eucaliptos. Enquanto falava assim, os olhos de Eliuia eram eternamente doces. Semicerravam-se em irresistível carinho. Então disse: -- Hoje faço amor com qualquer pessoa. -- Comigo também? -- Sim. Se quiseres. Hulmira sorriu e pensou que gostava tanto de Eliuia que até poderia enlouquecer. -- Lembro-me de ti quando eras criança. -- disse. E então contou-lhe: -- Já nesse tempo eras bonita como uma pérola. Fina e delicada. A pele morena e lisa. Pura. Rodeou-lhe os ombros com o braço quente e o coração palpitante. -- Um dia... -- sussurrou-lhe, a boca encostada ao ouvido -- Faremos amor. Eliuia olhou-a nas pupilas claras, e respondeu com desnorteante simplicidade, um sorriso a morder-lhe as covinhas da face: -- Desavergonhada. Gácia apareceu nesse momento. As duas viram, em baixo, o corpo pequeno, nu e frágil, deslizando entre as árvores do bosque, o rosado da pele entre o azul e o verde da vegetação. Eliuia abriu os lábios para lhe chamar pelo nome, mas foi então que os sinos da aldeia repicaram efusivamente, e o céu ficou cheio de timbres delicados e alegres. Gácia voltou a desaparecer, e Hulmira e Eliuia lembraram-se que era Natal. -- Caprichosamente. -- murmurou Hulmira. Perguntaram-se, então, coisas sem resposta, barcos encalhados entre o coral do pensamento. E Hulmira, olhando com fixidez mas sem compreender os flocos de algodão que vagueavam perdidos na felicidade, pareceu completar a sua ideia com palavras de longínquo sentido: -- É Natal, mas Jesus não desceu... à Terra. É Natal... mas as nuvens continuam embriagadas. O azul do céu continua sem explicação... -- Por isso... -- adiantou Eliuia, e a companheira julgou ver-lhe nas pupilas sobrevoar um anjo de asas brancas -- ... continua inexplicavelmente belo. Desceram porque havia no ar o cheiro a filhozes. Ambas tiveram na memória o tempo doce da meninice, e Hulmira falou na desaparecida avó Cândida: -- Lembro-me dela eternamente vestida de branco. Não me lembro, isso não, de como vivia e onde ganhava o dinheiro para os doces de açúcar. Depois, quando a viu vinte anos passados após a sua morte num ataque de coração, entrando em casa vestida com a bata branca dos padeiros, e segurando na mão um tabuleiro cheio de bolos, não acreditou que ela vivesse ali e seguiu em frente. -- É a primeira vez que vejo esta aldeia. -- sussurrou, inadvertidamente, a bela Eliuia. Ela não se extasiava sob o aroma das filhozes. Procurava, por todo o lado, gente que como ela vivesse das castanhas assadas. -- Não. É a segunda vez. -- rectificou Hulmira. Mas não lhe explicou. Sabia que era difícil. Mesmo assim, observou: -- As pessoas não nos conhecem. Olhavam para elas sem grande curiosidade ou interesse. Por isso, Eliuia não resistiu e disse: -- É como se estivéssemos mortas. -- Nós? Ou elas? -- Aqui... não comem castanhas pelo Natal. Quem as viu passar, com uma aura branca que começava nos pés e lhes envolvia o corpo até à ponta dos cabelos, foi o padre Maicel, que nessa altura se encontrava em roda de amigos saboreando a aguardente e as filhozes enormes e açucaradas. Elas, porém, não deram por ele. E não viram, ao sol da tarde, quando levaram o religioso em braços as espantadas pessoas da aldeia, intrigadas com a primeira bebedeira de Maicel. |