Velhinho de bicicleta
O velhinho, vestido de negro, percorre, na sua bicicleta, as ruas da aldeia. Vai atento e não vai seguro. Nas suas mãos, a bicicleta é um cântaro prestes a partir-se. Na fonte vai observando os rapazes à espera da água mágica. Os seus olhos vão semicerrando-se à medida que o tempo passa e o sol vai caindo.
As velhas
Carregando montanhas de ervas regressam as velhas da aldeia. Acompanham-nas as netas, correndo atrás e à frente dos cães. Vêm em grande multidão. Só quando pára a grande música elas também parecem serenar. Olham para o céu, ouvem o que os deuses têm para lhes dizer. Depois, voltam a segurar rijamente nas suas montanhas de ervas e retomam o caminho para a sua aldeia.
A carruagem
A carruagem onde eu certa manhã me meti ia a grande velocidade, e até hoje não achei
maneira de a parar. Os cavalos tomaram o freio nos dentes e puseram-se por uma estrada cheia de pedras e buracos. Por isso a carruagem vai aos saltos e eu também, mas a verdade é que nenhum de nós quebra. Parecemos mais fortes do que o vento. Não perdemos a esperança, e mesmo os feiticeiros da encruzilhada próxima se apaixonaram por nós. Na estrada da felicidade
Havia um homem que ia a descer a estrada da felicidade quando ao seu encontro saiu uma velha.
-- Que me queres? -- perguntou-lhe ele. -- Quero perturbar a tua felicidade. -- foi a resposta dela. Ele sorriu. -- Então mete-te no meio do caminho. -- disse-lhe. E ela pôs-se e ele passou-lhe por cima. A mulher que subiu ao céu
Todas as pessoas têm no rosto, e nos olhos, sobretudo, um qualquer drama interior.
Aquela mulher também o tinha. Era bela como poucas eu vira até então. E tinha uns olhos negros muito grandes que pareciam chorar. Quando a vi estava ela a vender bijuterias na grande praça. Nas suas mãos os crucifixos pareciam ter mais vida, e as patas dos coelhos eram mesmo capazes de todas as magias. Depois, anoiteceu e eu fui atrás dela. Subiu o longo parque, e só acabou no céu.Na altura pensei que o grande drama dela era esse: subir todas as noites ao céu devia ser cansativo. Mas não: depois vi que, poucas horas após, ela desceu. E subiu de novo. E mais uma vez desceu. Esteve toda a noite assim, cá e lá, e eu a ver. Não conseguia, por mais que quisesse, compreender o que se passava. Então, a determinada altura, acompanhei e tracei os mesmos passos que ela. Só assim entendo, vivendo a mesma experiência. |
Hino nacional
1.
Ao fundo do horizonte, a cidade enlouquecia no vermelho imaginário com que se retrata o inferno. A moldura cheia de pequenas serpentes incendiava-se em paixões insensíveis e cegas como a toupeira. Luca Santitore sorriu de desprezo e atirou para o chão a ponta ainda acesa do cigarro acabado de fumar. Esperou que ela tocasse a folha seca por perto caída, mas lentamente a cinza morreu na terra macia, afundando-se como se sorvida por força estranha no fundo da terra. Desaparecida a excitante possibilidade do incêndio, Luca fechou os olhos lentamente e perguntou-se o que aconteceria se adormecesse mesmo ali. Sorriu pensando que ao longe alguém se deteria no caminho, apontando a estátua. Muitos dedos marcados pelo espanto, como olhos embevecidos na bengala de Charlot. 2. Charlot estava nesse momento segurando os cordelinhos do mundo. Escondido debaixo da grande mesa da sala sagrada, o sorriso maroto espreitando-lhe nos lábios. Quando os últimos passos deixaram de soar, Charlot agitou os cordelinhos do mundo e espantou o reino dos deuses. Ouviu-se um confuso rumor de gritos e gargalhadas, correndo as montanhas e os vales. Houve um deus que chorou e disse que tinha muita pena. Houve outro que avançou com a necessidade de um inquérito rigoroso, para apurar as culpas e as consequências. Luca Santitore levantou-se então do sítio onde estava e foi atender o telefone. -- O chefe quer falar contigo. 3. Noutro lugar, talvez noutro paraíso, havia um homem que caminhava sozinho à procura de um lugar para respirar. Este homem chamava-se Tor Alec e nos seus olhos profundos e misteriosos havia uma luz que muita gente, incluindo os deuses, costumava denominar por loucura. Uma criança que lhe saiu ao caminho olhou-o com desmesurada atenção. -- O que levas nessa mala? Tor deteve-se, pela primeira vez depois de muitos anos. Não lhe disse nada, mas abriu a mala e dela tirou uma enorme caneca de vidro, de um tamanho nunca visto. Era de tal modo grande que a criança teve medo e fugiu. O homem, sempre em silêncio, voltou a colocar a caneca na mala e lentamente retomou o caminho na estrada deserta. Mas agora tinham menos brilho os seus olhos. Tor Alec chorava tímidamente. 4. A única coisa que os deuses encontraram debaixo da grande mesa foram os perdidos cordelinhos do mundo. Nem sinal de Charlot. Estavam ali umas cinzas do cigarro acabado de fumar, e via-se que estivera alguém agachado, porque os pés da mesa não estavam no sítio habitual. Pareciam ter andado a dançar, talvez ao som daquela música maluca que entrava pela janela. Então, muito cansados, abriram o livro e escreveram que o processo estava arquivado. 5. A mulher do arquivo tinha os olhos tapados por uns óculos que pareciam duas rodelas de limão. Espremido o sumo, a beleza estava matizada de azul claro. Luca quis perder-se naquele céu. Por isso, fez-lhe um sorriso encantador, do qual ela fugiu como se tivesse visto a serpente emplumada. Assim, Luca voltou a baixar a cabeça, mergulhando na leitura daquele volume enorme. Lá estava Tor Alec, retratado de todas as formas. Vestido dos tempos em que era um deus. Fazendo sinal à mulher, disse-lhe que podia novamente arquivar o processo. 6. Numa aldeia do mundo escondido, uma criança apareceu a chorar muito. A mãe, aflita, correu para a rua e recebeu-a nos braços. Sem lhe perguntar o que se passava chorou com ela. Vieram mais pessoas e ficaram embevecidas, olhando a ponta da bengala de Charlot. Tudo acabou em grandes gargalhadas. A criança disse que tinha visto um homem com uma caneca do tamanho duma casa. No final do divertimento, cada um voltou à sua vida. Na rua abandonada, ficaram as crianças, brincando com as pedras e a ponta da bengala de Charlot. 7. No bar do esquecimento, Luca Santitore bebeu desmesuradamente. Quando saíu, amparado por Leda, que era tudo menos a rapariga dos seus sonhos, teve uma súbita ilusão. Viu ao longe, de pé sobre o banco do jardim, o velho Tor empunhando com um orgulho único uma enorme caneca de cerveja. Do fundo das barbas sem fim, ouviu-se então a voz de Tor: -- À tua saúde, tu que não queres ser um deus! E, de um trago, bebeu como quem mergulha com desespero até ao fundo do mar. Gaivota perdida. -- À tua saúde! - gritou Luca, perfeitamente embriagado. Então correu e Leda não teve artes de o segurar. Saltou para o banco e, lado a lado com Tor, cantou o hino nacional. O livro
Está um tempo maravilhoso. Tudo é sonho, aqui neste banco de jardim. Lá longe, na minha direcção, a àgua de um repuxo eleva-se e cai com carinho. Correndo tudo à volta, as palmeiras olham serenamente. Os namorados passam, de braço dado, e fazem-me inveja. Eu semicerro os olhos, cruzo as pernas, sonho e escrevo.
Ao longe, para lá do rio fascinante, rapazes correm na estrada. Ali atrás, os carros passam quase em silêncio. No jardim de infância o pai balouça o seu bebé, e é nesta altura que uma velha se aproxima de mim. Óculos, braços cruzados, vestido azul às bolinhas brancas. Olha e passa, passa e olha, deixou caír um livrinho. Um livro sem côr. Fico a olhá-lo, vejo que é transparente e não quero acreditar. Apesar de estar caído no chão, naquele sítio continuam a ver-se as pedras de que são feitas as calçadas. Pego nele e, para desfazer todas as dúvidas, coloco-o sobre a relva do jardim. E esta não desaparece e eu espanto-me mais. Finalmente decido-me a abrir o livro. Primeiro, tenho dificuldades, porque a sua capa é muito pesada. Parece pedra, ou mesmo chumbo, e durante uns momentos vêm à minha memória os grandes e antigos volumes que encerram em si os segredos do mundo. Sei, vem a mim a certeza absoluta, que este livro também revela muitos segredos do mundo. Por isso, a minha expectativa adensa-se, e abro a primeira página. Não tem nada, é transparente como o é todo o livro, a segunda, a terceira, a quarta e todas as outras páginas. Fico algo desiludido. Um livro transparente! Mas, depois, acho curioso e interessante. Meto-o no saco, e digo para comigo que nunca mais o hei-de largar. O reino dos homens
No fundo do abismo, Lizarede sorriu. Olhou para cima e abriu a boca de espanto. As rochas erguiam-se assustadoras, gigantescas, como se fossem impossíveis de alcançar.
Mas Lizarede sorriu. Nada temia. Com um gesto súbito, sacudiu a pena de índio que tinha no cabelo e pôs mãos à obra. Escorregou quando chegou ao cimo da primeira rocha, mas depois, sempre seguro e confiante de si, lá foi indo, á força de braços e com a coragem estampada no rosto. Na parte final, contudo, Lizarede teve dificuldades. A montanha fazia um declive súbito para o espaço vazio, e por ali só era possível passar atravessando a rocha pelo seu interior. E Lizarede, sempre sorridente, dispôs-se a fazê-lo. As dificuldades eram rapidamente esquecidas por um homem como ele. Ao esticar a mão para uma rocha, um ruído fez-se ouvir e um pequeno macaco apareceu na sua frente. Soltou um grito estridente, como se estivesse imensamente feliz, e numa rápida decisão esticou a mão e puxou Lizarede para cima. Quando ali chegou, Lizarede respirou fundo. Naquele momento, não sorriu. Talvez tenha sentido a responsabilidade de tão sagrada ocasião. Afinal, estava ali, pela primeira vez, no famoso reino dos homens. |
Marilina Sea não é um vulto
Da janela do seu quarto, Marilina Sea avistava a estrada por onde as pessoas passavam, bamboleantes e vaidosas na figura que tinham encenado. Serena, os olhos fixos como em delírio, não via mais que vultos sombrios caminhando nas pedras, vindo e desaparecendo, subindo e descendo, vivendo e morrendo através do horizonte. Por cima, o céu cobria-se sempre de um mágico azul escuro. E as pessoas ficavam, também elas, misteriosamente escuras.
Marilina Sea, divertida, sorria. Punha uns óculos mágicos e o escuro desaparecia. Dava lugar a um céu rosado por onde de súbito deslizavam pássaros brancos, em exasperante lentidão. Marilina gostava. Passava assim as tardes do seu fim-de-semana, excitada porque havia algo mais para lá do vale, na curva do horizonte. Houve então uma tarde em que Marilina Sea colocou sobre a pele o seu mais belo vestido de Verão, de um azul claro finíssimo e quase transparente, penteou cuidadosamente os seus cabelos negros, e colocou sobre os olhos os óculos mágicos que nunca ninguém lhe vira. Pôs-se ao caminho, cheia de coragem, e se alguém naquele momento a visse comprovaria de imediato que Marilina Sea não era um vulto. Não. Ia bela, alegre e transparente como uma brisa de Verão. O mundo das pessoas sempre a rir
Descobriu um dia um mundo onde todas as pessoas riam. Havia gargalhadas por todo o lado. Quando o viram transpor as portas daquele mundo, quase morreram a rir. Deitavam-se no chão, saltavam, subiam às àrvores sempre a rir.
Ele, a princípio, estranhou um pouco tudo aquilo. Depois, habituou-se e começou também a rir, muito, muito, e em breve estava como todos eles, perfeitamente integrado naquele novo mundo de gargalhadas. Alguns anos depois, porque lhe doía a garganta de tanto rir, começou a chorar. Os outros estranharam, rodearam-no, não gostaram das suas lágrimas e mandaram-no embora. Ele, então, regressou ao mundo anterior. Reencontrou velhos amigos, velhos objectos, velhas paisagens. E continuou a chorar, de emoção e de alegria. O antepassado
Quem vem sozinho pela estrada abandonada? Será um fantasma, um deus?
Escondo-me nos arbustos à espera que ele passe, mas isso em nada resulta. Ele pára o carro, e olha para o sítio onde estou. -- Que me queres? -- pergunto-lhe, mas não me mostro. -- Vem cá... eu sou o primeiro dos teus antepassados! De imediato, dei um salto e fui para junto dele. Sempre tinha sonhado conhecer os meus antepassados. -- Anda comigo. Vou levar-te a conhecer o teu país. Então pus o carro a trabalhar, e este levantou voo. Agora continuo à espera que ele aterre. |